sábado, 20 de novembro de 2010

TROPA DE ELITE


Como as regras do Batalhão de Operações Especiais, da PM do Rio, que inspirou o premiado e polêmico "Tropa de Elite", viraram bíblia de palestras e são aplicadas no dia-a-dia de grandes empresas


por Maeli Prado

"Tropa de elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você." Os versos da trilha sonora do filme brasileiro mais visto e comentado dos últimos tempos ecoam no pequeno auditório em uma das ?liais da seguradora Unibanco AIG, em um casarão da avenida Brasil, em São Paulo. São 20h de uma quinta-feira, 28 de fevereiro, quando o "caveira 69", Paulo Storani, 45, ex-capitão do Bope (Batalhão de Operações Especiais), é anunciado à platéia. Na tela de projeção, um slide com a frase "Construindo uma Tropa de Elite" esclarece o motivo do improvável encontro de mundos: um ex-policial do grupo de operações especiais da Polícia Militar do Rio e vendedores de seguro paulistanos.

Sob aplausos, o palestrante entra na sala repleta e grita: "Caveira!" Storani, que está se convertendo em estrela do segmento motivacional, recebe de volta, em uníssono, a saudação, típica dos oficiais do batalhão. Entre os 60 ouvintes, estão clientes e funcionários da quarta maior seguradora do país. A maioria é de homens engravatados ou de camisa social. Poucas mulheres, de tailleur e salto alto, arriscam-se no ambiente nitidamente masculino.

Storani veste terno e gravata como os integrantes de sua platéia, mas fala e age como um líder do Bope, corporação onde trabalhou por três anos e que abandonou há dez. "Volta aí, o senhor está muito rápido", ordena, em tom de brincadeira. É prontamente atendido pelo funcionário que troca os slides. Em seguida, exibe fotos do treinamento que deu aos atores de "Tropa de Elite", ainda na fase de pré-produção do longa. Faz piadas com o fato de ter levado um soco na cara do protagonista Wagner Moura, que personificou o Capitão Nascimento.

Depois do rápido preâmbulo, o palestrante chega ao ponto: "Você é um operação especial ou é um convencional na sua atividade? O convencional é o invertebrado, é quem desmonta no primeiro tiro ou na primeira meta [de vendas]".

Storani inflama a platéia com a terminologia usada pelos policiais no filme. "E quem não está satisfeito...", provoca ele. O público reage, de pronto. "Pede pra sair!", respondem os engravatados, usando o bordão que tomou conta do país logo após o lançamento do filme em outubro do ano passado.

Àquela altura, uma hora depois do início da preleção, a audiência está bem familiarizada com as lições de Storani. Seu manual evoca paralelos entre as regras do batalhão e as do mundo corporativo: naquele contexto, o jargão do Bope "missão dada é missão cumprida" ganha a conotação de "meta dada é meta cumprida". "Vá e vença" vira "vá e venda". Alguns riem, um pouco constrangidos. Muitos balançam a cabeça em sinal de concordância. Por volta das 21h30, o "grand finale". Liderados pelo palestrante, todos gritam: "Eu sou caveira!"

As cenas presenciadas pela Revista viraram rotina na vida de Storani. Ele começou a dar palestras motivacionais em outubro e está com agenda lotada até maio. Nesse ramo, os cachês costumam variar entre R$ 5.000 e R$ 10 mil.

O ex-capitão do Bope já falou para funcionários de bancos, de montadoras, de indústrias das áreas têxtil e de tecnologia. Virou guru de executivos. "O conceito de superação de limites e de encarar as adversidades com naturalidade pode ser aplicado à iniciativa privada. Montei a palestra e me surpreendi com os resultados", afirma Storani, mestrando em antropologia, com dissertação sobre o Bope. Ele ainda concilia a agenda de palestrante com o cargo de secretário de Segurança Pública de São Gonçalo, município do Rio.

Pedindo para sair
Os mais empolgados levam os conceitos para dentro das empresas. Não falta nem a caveira, símbolo máximo dos policiais durões do batalhão. "Quando alguém consegue bater a meta, faz no computador um bonequinho com a caveira do Bope e manda por e-mail", conta Patrícia Olivani, 36, coordenadora de vendas do Unibanco AIG. "Nas palestras, fazemos uma auto-reflexão, buscando as características do 'caveira' dentro da gente."

Gustavo Rosset, 33, diretor comercial da Rosset Têxtil, proprietária de marcas como a Valisère e Cia. Marítima, foi além, depois de contratar a palestra do ex-capitão no início de fevereiro. "Na empresa, a gente agora só se chama por número", afirma. No filme, Capitão Nascimento trata os subordinados de aspira 01, 02 e assim sucessivamente, durante o duro treinamento para ser aceito no batalhão de elite.

Rosset conta que, depois da palestra de Storani, dois funcionários "pediram pra sair". Na telona, a expressão sintetiza o momento da desistência daqueles que, por exaustão ou fraqueza, não vão se tornar "caveira". "Um [pediu pra sair], três dias depois da palestra, e outro, 15 dias depois, porque viram que o bicho ia pegar", diz o diretor e herdeiro da Rosset Têxtil, maior grupo brasileiro no segmento de tecido de lycra, com 3.000 funcionários.

O empresário mandou colocar, na sede da empresa, em São Paulo, banners pretos com a caveira e dizeres do Bope. "Temos que tirar as pessoas da zona de conforto", afirma Rosset. "Elas começam a fazer um paralelo entre suas vidas pessoais e profissionais com a vida dele [Storani], que era subir morro e lidar com o tráfico."

O discurso de André Rutowitsch, 36, diretor-executivo da Unibanco AIG, vai em outra direção. "Todos os anos contratamos vários palestrantes para falar com os nossos clientes, sempre voltados para esse lado motivacional. Nos últimos anos, tivemos o Bernardinho [técnico da seleção brasileira de vôlei] e agora trouxemos o Storani", afirma. "Ele é alguém que fala de liderança, de trabalho em equipe, e fala do batalhão de uma forma alegórica. Buscamos, o tempo todo, que não haja uma associação muito direta com o filme."

O executivo diz que a pressão sobre os profissionais está presente em toda empresa. "Quando existem metas a serem cumpridas há uma pressão inerente ao negócio em qualquer ramo de atividade."

Caveiras e invertebrados
A filosofia para se tornar oficial do batalhão é muito clara: o mundo se divide entre caveiras (como são chamados os policiais do grupo especial) e invertebrados (os fracos, que não agüentam a pressão). Os primeiros fazem o impossível, mesmo em condições extremamente adversas. "A dona-de-casa que sustenta todos os filhos sozinha e não desiste é caveira. O vendedor que bate suas metas é caveira", compara Storani.

Misturar os dois universos desperta críticas. "Se é capitalismo selvagem, talvez uma abordagem de guerra seja uma boa idéia", ironiza Marcelo Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, ao comentar as palestras.

"Ninguém abre empresa para fazer caridade, vivemos em um mundo capitalista", diz Storani. "O invertebrado é a pessoa que não está habituada a lidar com pressão, e isso não é demérito nenhum." Continuando com a analogia, ele ressalta que no Bope tem gente que não consegue se adaptar às exigências do batalhão e vai fazer policiamento comunitário. "É a mesma coisa com vendedores: é uma profissão que exige saber lidar com a pressão de ouvir um não e mesmo assim continuar tentando convencer alguém a comprar."

É legítimo transpor os métodos do Bope, que muitos consideram questionáveis até mesmo na guerra urbana, para o universo das empresas? Para Viviane de Oliveira Cubas, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, usar tática de guerra em outro ambiente é desumanizador. "É característica do mundo empresarial exigir uma eficiência cada vez maior dos seus funcionários, dar responsabilidades cada vez maiores", afirma. "Você estabelece metas que às vezes não são reais. O que essa pressão e essa cobrança constantes podem causar à saúde desses funcionários?"

Um dos autores de "Elite da Tropa" (livro que originou o filme) e um dos roteiristas de "Tropa de Elite", o ex-capitão do Bope e sociólogo Rodrigo Pimentel, 37, também se converteu em palestrante. Faz entre quatro e cinco preleções por mês em empresas.

"A primeira coisa que eu falo é: 'Não vão bater nos seus vendedores'", diz ele, que foi contratado para falar a funcionários de empresas, como Perdigão, gigante do ramo alimentício, e até multinacionais farmacêuticas.

Um dos temas de seus discursos é "a força de um símbolo". "Toda empresa tem símbolos e lemas", compara. "Também existe sempre um ritual de passagem, estabelecido quase sempre em função das dificuldades de pertencer a um grupo."

Ao analisar esse tipo de palestra, o psicanalista Jorge Forbes aponta fragilidades. "Todos os discursos motivacionais são reducionistas da experiência humana. São uma tentativa de estimular a adesão a uma corporação apelando para o narcisismo. Quem não adere deve se envergonhar", diz o psicanalista, ao analisar o estímulo exagerado à competição e à superação de limites tão em voga no dicionário corporativo e reforçado nessas palestras. "De qualquer forma, é um discurso velho que vem com uma nova roupagem."

Capitão galã
O diretor José Padilha, assim como o comando do Bope, não quis se manifestar sobre o novo fenômeno das palestras motivacionais, mais um subproduto do sucesso do filme. Muito se falou sobre o impacto de "Tropa de Elite" sobre a sociedade brasileira: das discussões sobre tortura policial e do papel da classe média no tráfico de drogas a programas de TV como o "Bofe de Elite", na Rede Record, com o qual Tom Cavalcante bateu a Globo em audiência.

De polêmica em polêmica, o mercado continua surfando na onda de sucesso do longa. Em pesquisa encomendada pela rede varejista Marisa para descobrir qual seria o "homem ideal" na opinião das brasileiras, Wagner Moura recebeu 90% dos votos. O Capitão Nascimento da ficção ficou à frente de galãs "clássicos" como Reynaldo Gianecchini e Fábio Assunção. Foi contratado como novo garoto-propaganda da marca.

Em resposta à jogada de marketing da concorrente, as lojas Renner contra-atacaram com o lançamento há dois meses de uma coleção de camisetas com expressões do filme, como "fanfarrão" e "aspira", gravadas no peito. A linha já esgotou. Outra marca, a goiana Eckzem, também criou uma camiseta com uma estampa que mostra um desenho do Capitão América, herói de quadrinhos americano, com o nome "Captain Nascimento". Ao lado, o jargão mais famoso do filme: "Pede pra sair!".

Transformar um policial truculento e angustiado como Capitão Nascimento em herói, seja em camisetas ou diante de uma platéia de vendedores, deixa surpreso o ex-governador de São Paulo, Cláudio Lembo, que enfrentou uma gravíssima crise de segurança pública com os ataques do PCC em 2006. "Uma coisa é respeitar a polícia, outra é transformar os policiais em heróis", afirma.

Para Lembo, o sucesso do filme reflete a insegurança da sociedade. "Principalmente de uma classe média desesperada por segurança, que adora o herói que vai protegê-la de todos os perigos." Quanto aos treinamentos motivacionais em empresas, o ex-governador também faz ressalvas. "Todos nós, sejamos do Bope ou não, somos humanos e não podemos ir além dos nossos limites."

Quem ultrapassou fronteiras foram os integrantes de um grupo de strippers, "Os Sedutores". Eles começaram a se apresentar vestidos de oficiais do Bope e com metralhadoras em uma casa de suingue em São Paulo. O cachê de cada um dos sete componentes é de R$ 150 por apresentação de 45 minutos. "Essa coisa de Bope mexe com a fantasias das mulheres", constata Alexandra Valença, 26, coreógrafa do grupo. Uma prova de que nem a libido dos brasileiros ficou imune ao fenômeno cinematogrático.

A influência do longa em terrenos tão distintos pode ser explicada na diversidade de interpretações que a produção oferece. "Quem tem algum tipo de orgulho militar se vê ali, quem tem críticas sociais à elite brasileira se vê ali, quem critica o bom mocismo exagerado das ONGs se vê ali", afirma Forbes. Uma identificação que lotou as salas de cinema e agora enche auditórios. Neste caso, com uma platéia dividida entre aqueles que aplaudem e aqueles que se arrepiam diante dos jargões usados pelo Capitão Nascimento. Em cartaz, mais uma polêmica de "Tropa de Elite".

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